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Instigue-se a ver Além do Óbvio e Liberte-se | Arte e Metáfora


Performance O Choro, Dia das Crianças, 12/10/16 Roni Diniz

Me encanta perceber o quanto somos pais e ao mesmo tempo filhos deste nosso Brasil!

Somos o autor das escolhas e do caminho que trilhamos como um artista que vai desenhando um traço de tinta com o seu pincel sobre a tela. Mas também somos a própria obra que estamos pintando e vai surgindo ali na tela da vida. Eu sempre gostei da precisão, considero-a fundamental em diversos momentos, como parâmetro ou norte, ponto de partida e até como alicerce para qualquer construção física ou conceitual, mas perceber a ambiguidade das coisas me fascina demais! E também acho um tanto libertador! Perceber o quanto cada coisa muda de acordo com o ponto de vista e este é realmente alterado pela trajetória precedente de quem o observa, principalmente quando este

não se dá conta destas influências e se fecha no que consegue ver agora como se fosse verdade absoluta…

Posso observar muitos aspectos, intuições e metas que me instigaram a realizar a performance O Choro. Mas gosto de pontuar alguns mais do que outros. Minha relação com as crianças que sempre me faz sentir como se fosse uma de novo, ainda que esta sinergia não englobe nenhum tipo de negação da minha fase adulta atual, mas principalmente as minhas inquietações sociais e artísticas, como ao observar o covarde soterramento da infância com nosso estilo de vida superficial e anestesiado da própria vida. Há muitos artistas e até algumas ciências que estudam o compêndio de informações valiosas e indicativas que o ser humano deixa fisicamente nos lugares nos quais habita e por onde passa, todo o rastro que fica construído não poderia ser nada mais do que um reflexo do que trás dentro de si e sua relação consigo mesmo.

O Choro nasceu entre os muitos experimentos de intervenção urbana que realizei durante o ano de 2016. Por meio dos experimentos de dança-performance Permeável, fui percebendo o desenvolvimento de uma outra esfera mais sensível do meu corpo, os campos energéticos. Permeável me permitia um momento ímpar de retirada do senso comum e uma observação de fora do contexto urbano enquanto eu ainda estava ali desperto, bem como uma oportunidade de experimentar na pele e na alma as diversa camadas da Avenida Paulista, na maioria das vezes em pleno horário de pico. Então, um belo dia, fazendo o percurso que tinha que fazer pelo menos uma vez por semana da Rua da Consolação até o Centro Cultural São Paulo, onde eu ensaiava com o meu grupo da época para a peça O Santo e a Porca, um trajeto que me levava a transitar por toda a avenida em sentido retrógrado, senti como se houvesse choro de verdade em cada esquina de concreto da avenida, em cada calçada, canteiro, farol, praça e loja… Uma dor profunda expressa pelo lugar que apenas é tido como via de passagem, interpretei, ninguém se demora ali, todos estão passando, ausentes de si mesmos, com a meta clara e urgente de chegar logo em algum outro lugar. Os poucos que se demoram em algum ponto, notam-no tanto quanto ou menos do que os que passam apressados. Eu podia ouvir este choro muito claramente e até me arrepiava, foi então que percebi que este choro por atenção e pelo direito de existir e saborear a vida e os encontros era nosso! Era como o quadro que um artista pinta, mas nós transeuntes o pintamos de forma inconsciente e qualquer um pode percebê-lo se experimentar “sair” e olhar de fora. Este choro era meu e de nossa criança interior e tudo o que ela representa, O Choro era imanifesto fisicamente, mas estava ali tanto quando o rastro das passadas e ruídos das conversas e dos carros acelerados, mas era ignorado, como costumamos fazer com tudo que nos incomoda e pode atrasar a nossa chegada ao compromisso urbano para o qual estamos sempre atrasados, para o tal sucesso. Eu podia sentir até mesmo as formas e estratégias que usamos para cimentar este choro, “distrair” esta criança e resolver logo suas birras para voltarmos a produzir e comprar.

Foi assim que decidi dedicar 40 minutos da minha vida a esta criança, sendo um pai que a acolhe e decide ouvir o seu choro, pois só há um jeito de curá-lo, deixando-o ser expresso e manifesto com coragem e empatia até que se transmute sozinho e naturalmente. Esteticamente, as decisões não podiam ser muito diferentes do quadro paradoxal que a arte performance ousa causar no meio ao qual se insere, sem aviso, preparações ou respaldo da segurança que a convenção artística do espetáculo costuma trazer, organizando os lugares de artista e público e como cada um deve se encontrar e pode reagir satisfatoriamente durante o encontro.

A intervenção durou quase 40 min, mas me tomou o dia inteiro, no meu diário de bordo, ficaram resíduos de sons dos meus sobrinhos jogando bola no quintal logo cedo quando me acordei na manhã deste feriado, meu atraso devido ao metrô mais lotado do que o convencional, o esforço para conseguir transportar o pufe, tripé da câmera e mochila cheia de coisas. Uns dias anteriores, escolhendo e comprando os objetos como a manta branca que foi juntamente com a minha sobrinha que passava a semana na minha casa, a escrita da hashtag #OCHORO após alguns testes, a bandeira do Brasil que seria o nosso bebê simbólico, alguns ensaios decidindo a sequência da movimentação, será que eu iria conseguir chorar? E o dia no qual o poema que compõe a obra brotou como uma cachoeira. Esta obra é repleta de fragmentos do curso de cinema que eu iria fazer uns meses a frente como “coragem e comprometimento emocional” e a noção de “ser em cena”. A saga para achar algum amigo voluntário para me acompanhar e fazer o registro visual, sem o registro, obras de arte assim ficam perdidas no tempo e na efemeridade alucinante de São Paulo.

A arte e a metáfora

Uma das primeiras coisas que me fascinou na poesia e na arte visual quando muito cedo comecei a enxergar os universos impressos ali além da obra, foi a potencialidade infinita da metáfora!

Metáfora

substantivo feminino

ESTILÍSTICA•LINGÜÍSTICA

designação de um objeto ou qualidade mediante uma palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relação de semelhança (p.ex., ele tem uma vontade de ferro, para designar uma vontade forte, como o ferro).

Um dia destes eu estava “explicando” para a minha irmã que mora lá em Pernambuco desde sempre, esta ideia, mais ou menos assim:

Quando falamos aquele provérbio “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, raramente temos um objetivo de discutir sobre o mar em si ou sobre as a dureza das pedras, mas sim estamos evocando esta imagem tão conhecida e fácil de entender para exemplificar ou ilustrar uma outra situação semelhante a ela, geralmente mais abstrata e sutil, na qual ocorre a mesma ação ou uma ação análoga, paralela… Apesar de ser “mole” e aparentemente frágil, a água tem este grande poder de desgastar resistentes pedras devido a sua persistência e constância durante longos períodos.

A arte está sempre se utilizando de metáforas semelhantes e muitas vezes até consideramos “pobre” uma obra de arte que faz um discurso muito direto. Lembro-me das aulas de expressão corporal do curso de arte dramática no Senac, quando nossa professora repreendia algum aluno que utilizava gestos muito óbvios para transmitir sua mensagem, por exemplo ao “apontar ao coração” para falar de sentimentos ao invés de pesquisar maneiras mais profundas. Estes recursos muito óbvios acabam incorrendo em clichês e deixam a obra de arte muito rasa, como se estivéssemos subestimando o receptor e fazendo um trabalho preguiçoso como artista. Quando fazemos assim, é como se roubásse-mos do apreciador o prazer de saborear a obra e organizar em seu paladar a sua experiência única com a refeição, dando a ele um monótona papinha ao invés de um prato colorido com diferentes texturas, cores e sabores que conversam entre si e se harmonizam de um jeito único. Ao passo que quanto mais exploramos o mundo dos símbolos e investigamos a nossa expressividade e o mundo inconsciente, mais temos chances de universalizar a obra, pois podemos chegar a um ponto no qual pessoas muito distintas podem extrair um significado para si da nossa obra - a essência - às vezes até surpreendendo o próprio autor com novas possibilidades de leitura e aprofundamentos.

A minha conversa com a minha irmã foi desencadeada devido à polêmica que geralmente é causada quando alguma obra de teatro exibe um travesti crucificado e muitos imediatamente a lêem como se fosse um discurso expresso afirmando que Jesus Cristo era gay, por isso uma blasfêmia, um desrespeito, blá, blá e blá... Em nossa conversa eu tentei estimular ela a sair do senso comum (uma opinião mais fácil que a maioria vai aceitando e espalhando sem parar para refletir e confirmar), muitas vezes é uma opinião baseadas nos dogmas religiosos que leva as pessoas aos extremos, poupando-as de observar que a verdade é multifacetada, que entre preto e branco há infinitos tons de cinza, e geralmente, ao recorrer aos extremos rancorosos, estamos falando mais sobre nós e nossos preconceitos e medos (pré-conceito, uma ideia que se faz de algo antes de conhecê-la) do que da obra em si e o que ela realmente diz ou poderia nos dizer se abríssemos o coração para ver além das nossas limitações. Eu realmente não assisti a esta peça, mas já sinto o assunto de uma forma bem diferente, partindo de outros pontos de vista. Geralmente, quando vejo a foto no jornal de um travesti, um negro, uma mulher crucificada é fácil observar ali uma metáfora, uma expressão poética do ódio que Jesus sofreu. Na arte, nós podemos e devemos usar, por exemplo, o mar e o seu significado (algo conhecido pela maioria) para exemplificar assuntos distintos e não apenas para falar sobre assuntos que dizem respeito aos caiçaras e pescadores. "Pois onde estiver o cadáver aí se juntarão os abutres" (Mateus 24, 28), o próprio Jesus utilizava o recurso de metáforas para se fazer entender junto aos seus ouvintes, nesta, dentre muitas outras passagens, utilizou uma imagem conhecida por muitos no cenário onde viviam para transmitir sua mensagem, sem desmerecer ou atribuir qualquer valor aos cadáveres ou aos abutres o que lhe interessava era o raciocínio exemplificado pela imagem descrita. “Tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão.” Mateus 7:5 Imagine as charges magníficas que Jesus faria! De modo algum Cristo estava se referindo a um conselho literal afirmando que seus ouvintes estariam removendo ciscos dos olhos um do outro, como é fácil de perceber, trata-se de mais uma metáfora, de modo que seria irrelevante uma discussão sobre o fato de uma trave caber ou não dentro de um olho, por exemplo...

Sobre a crucificação de Jesus, é amplamente conhecido que não havia uma razão justa para o odiarem e o matarem, não havia, ele era inocente, mas havia grande intolerância daquele povo, tanta que a presença de Jesus soava como uma ameaça a ela, um medo de enxergarem suas próprias mazelas e se curarem que os cegou a ponto de cometerem crimes horríveis, cegos pela própria ignorância, projetando sobre Cristo os rancores que tinham contra si mesmos. Cristo é considerado na bíblia como um cordeiro que tira o pecado do mundo. O sacrifício de animais era um costume ritualístico desde o antigo testamento para os israelitas representarem seu arrependimento e a busca de reparação perante Deus. Parece que a humanidade ainda tem este hábito inconsciente, inconsequente e autômato de querer limpar a sujeira que produz dentro de si mesma e por escolha própria e individual ainda que inconsciente, por meio do sacrifício de alguma figura externa que se aproxime deste papel de bode expiatório ou que seja colocada nesta posição por alguma maioria que tenha uma opinião mais forte e impositiva, como ocorre a situação histórica da humilhação de Cristo por sua crucificação, de inúmeros mártires, das mulheres, dos negros, das bruxas, dos LGBT’s, ainda mais silenciosamente das crianças e dos animais e toda a natureza…

Mas tudo tende a mudar revolucionariamente quando percebemos que temos a responsabilidade e o poder de conhecer e diluir nossas próprias sombras ou turbulências internas sem a necessidade de espelhá-las e descarregarmos nossos rancores na primeira pessoa ou Ser que parecer uma válvula de escape para os sentimentos aos quais não assumimos ter ou não aprendemos a lidar porque negamos e negando é mais fácil cair na armadilha de fazer mais…

"Para que um ponto de vista seja útil, temos que assumi-lo totalmente e defendê-lo até a morte. Mas, ao mesmo tempo, uma voz interior nos sussurra: "Não leve muito a sério. Mantenha-o firmemente, abandone-o sem constrangimento."" (Prefácio do livro O Ponto de Mudança de Peter Brook.)

"E para que serve a arte? Para começar podemos dizer que ela provoca, instiga e estimula nossos sentidos, descondicionando-os, isto é, retirando-os de uma ordem preestabelecida e sugerindo ampliadas possibilidades de viver e de se organizar no mundo." Katia Canton no livro Corpo Identidade e Erotismo

Postagem no Blog com trechos do diário de bordo:

Ficha Técnica e Release:

http://www.ronidiniz.com.br/o-choro-performance

Outras Performances:

Sopro de Vida (da Rua 7 de Abril à Praça da República)

Performance Homens na Av. Paulista

Performance Peitos (Dia das Internacional das Mulheres na Av. Paulista)

VÍDEO COMPLETO

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