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Ainda #SomosTodosOtelo um ano depois!


Há exatamente um ano atrás estreávamos a peça #SomosTodosOtelo na Galeria Olido com uma circulação que resultou em 12 inesquecíveis apresentações. Lembro-me vividamente de uma abrupta sensação sinestésica a qual o texto Otelo de William Shakespeare tinha o misterioso feito de nos causar! Como se nos falasse ao pé do ouvido. Experiência que se parecia mais com a constatação de diálogos internos emergentes do que uma simples (nada simples) história. Este primeiro contato com este texto foi ainda no Senac quando nosso grupo da época estava prestes a iniciar um projeto de pesquisa e experimentações cênicas em torno de um dos textos consagrados que nos foram apresentados, para então, construirmos um projeto de gestão debaixo das regras comuns aos editais, claro que Otelo foi o nosso texto escolhido e estas impressões citadas foram quase unânimes entre o nosso grupo da época, embora o racismo seja muito comumente focado numa montagem deste texto, o que nos arrebatou foi mais universal e além, estava atrás do texto e das personagens, era atemporal: os conflitos humanos, inclui o racismo, mas ia além. Cada decisão e escolha neste processo, era discutida massivamente em grupo, caminhava para se tornar uma concepção, também era discutida em sala a cada novo experimento (foram 4), aferida, criticada, pelo público que até então era composto pelos colegas de sala e alguns professores. Em nossa primeira leitura dramática, todos de preto, decidimos deixar o público de pé como fazedores da cena e lemos o texto próximo aos seus ouvidos, olho no olho na medida do possível, envoltos em uma semi penumbra. Nos experimentos seguintes, nos libertamos das folhas escritas e percebemos que aquele encontro, era ainda mais olho no olho, sem o usar o toque físico, porém o mais intensificado possível, com voz, frequência energética, etc, a serviço deste encontro, foco no afetamento, para que aquela experiência vivida proporcionasse algum êxito ao nosso desafio de propor aos outros aqueles diálogos internos que ainda ressonavam dentro de nós, como um grito que busca a luz do mundo físico, do palco da consciência social em prol da qual o teatro insiste em desvelar e provocar... Quando nos formamos, aquelas esquetes de monólogos shakespearianos entremeados de partituras corporais e coros acusadores de atores assumidos na cena, quase numa forma brechtiniana, já tinham passado pela aprovação no curso e do público leigo em algumas ocasiões, até num terminal de ônibus do metrô Parada Inglesa, num experimento tão arriscado e potente quanto todas as outras escolhas anteriores na sua nova forma quase de “Intervenção Urbana ” deste experimento. A cada apresentação, alguns espectadores arrebatados nos convenciam que aquilo era maior do que nós e precisava continuar, mas acabou ali, naquele ciclo, juntamente com o curso técnico de arte dramática...

Calma lá! Paralelamente, eu com mais três atores, inclusive um que fez parte de toda esta história e outro que assumiu um personagem nesta intervenção inusitada que realizamos no terminal de ônibus, formamos um grupo de estudos, alguns meses antes do fim do curso, com o objetivo de descobrirmos nossas afinidades, trocarmos nossos saberes e experiências e darmos continuidade à nossa pesquisa com o teatro quando o curso terminasse. Em pleno mês de dezembro, tomamos a decisão de iniciar alguma montagem de peça, com base em um texto a ser decidido e após a leitura de quatro sugestões e votação, nos deparamos com Otelo novamente! O fato é que o edital iminente que mais se encaixava com nosso recém-formado grupo era o VAI (Valorização e Iniciativas Culturais), mas teríamos menos de um mês para escrever todo um projeto, concepção, etc... Foi então que surgiu a ideia de retomarmos o projeto #SomosTodosOtelo... Mas agora numa outra realidade, mais profissional, porém com a mesma essência e objetivos. Como montar #SomosTodosOtelo com quatro atores homens? Uma vez que queríamos contar a história toda? O Caetano Martins, diretor, foi o primeiro apoiador do Núcleo Teatral Simbiótico que até então nem tinha nome, em uma de nossas reuniões ele nos disse: “Esta peça pode ser montada com foco no Otelo ou com foco no Iago, vocês já pensaram o que vocês querem?” Ao que respondemos euforicamente: “Sim! Queremos com foco em todos os personagens.” Após o choque, explicamos que em nossa concepção o nome que demos, não se referia apenas ao Otelo, mas sendo ele o título que Shakespeare optou, deve se referir a todos os personagens, aos encontros, ao que cada um deles despertou em Otelo, na sua vida e vice-versa, e como esta obra ainda se encontra hoje conosco, tal qual o símbolo virtual da # que se torna um link ou encontro absoluto, passível de interação, encontro das linhas da vida, dos assuntos que “parecem” distintos, mas não o são, uma vez que forem vistos além dos rótulos e em toda sua complexidade...

Assim é a peça, “complexa e reveladora”, um estudo sobre ser humano, ao meu ver, esta e muitas obras de Shakespeare. O título é Otelo, mas seu “protagonista” talvez seja o mais passivo, simplesmente reage aos acontecimentos, manipulado por Iago, cuja ardil não vai além do estudo profundo e hábil das personas com quem convive, sua ação calculada em torno de suas metas, ele é um observador nato, estudioso, como o Ator é em seu ofício, ou o próprio Shakespeare o era, e deixa claro, magistralmente em suas obras! Porém Iago é “livre” dos valores, da culpa e da consciência quanto as consequências que o aguardam, uma vez que as sementes lançadas em seu "jardim" das vontades só poderiam reserva-lhe um destino implacável... Livre demais! E esta é sua desgraça e consequentemente de suas vítimas incautas também. Desprovido de qualquer empatia ou ética, porém envolto de “coerências” e lógicas demasiadamente racionais, o que muitas vezes o torna cômico, tal qual a tragédia humana, se vista sem o romance e fé, um fato que talvez não nos priva, ironicamente, de temos suave compaixão, empatia e identificação, até mesmo sentindo certa dose de sadismo em relação a este vilão incrível!

Mas não para por aí, Shakespeare não se conformaria em quebrar sutilmente os rótulos sociais e os clichês teatrais em um ou dois personagens não, ele acha de colocar uma simples serviçal como revolucionária bem a frente de seu tempo, embora a serviçal ousada não fosse novidade no teatro, esta é diferente sim, tem cores intensamente humanizadas e camadas profundas, uma mulher que não se calou, ato corajoso que custou-lhe a vida, é Emília, a boca da qual ouvimos, neste texto, pura e sincera dilaceração daquela moralidade hipócrita, ops! Não tão distante de hoje... É Emília, aquela que afirma à sua ama abnegada o quanto é capaz de trair sim o próprio marido com de consciência limpa, “se for para coroá-lo rei”, parece que Shakespeare adora bagunçar a ordem na mentalidade dos mais pragmáticos, é dela e do fundo de sua lealdade mais sublime que a verdade vem à tona nesta história, os rumos são transformados e a “ordem” é restabelecida, colocando à prova, em tempos tão medievais (desculpe o trocadilho) o paradoxo da inferiorização das classes sociais menores, a submissão feminina e o machismo!

Shakespeare tinha que coroar esta tragédia com uma mulher casta, ingênua e apaixonada, a mocinha, o símbolo mais difundido da mulher idealizada na arte, e apesar disso tudo, aqui, ela é corajosa e determinada a ponto de abandonar o conforto e mordomia, enfrentar o desprezo do influente pai, para concretizar uma união com um homem negro, numa época em que o racismo era o senso comum, Dêsdemona também era a frente do seu tempo e da sua sociedade racista, não se pautava pela cor da pele e sim pelo homem de caráter e tudo o que ele representava para ela, que apesar de delicada e prendada invejava uma vida de aventuras como a do general, por quem se apaixonou ao ouvir suas histórias de aventuras e tristes desventuras heróicas. Para em fim, ser assassinada, primeiro por sua própria submissão cristã e amor incondicional-cego e em seguida pelas próprias mãos deste homem que era o seu herói! Ao calor dos impulsos animalescos que também é parte da formação e das armas de sobrevivência de qualquer ser humano acuado, Otelo cometeu a maior covardia em nome de sua própria honra, em nome de seu amor? Herói que tem suas fragilidades e incoerências dolorosamente reviradas ao avesso por Shakespeare e postas sob os nossos olhos sedentos por julgá-lo, sedentos pelo conforto da crença na ordem e justiça a qualquer preço, vestimos assim a sua pele, a cada investida bem sucedida de Iago, e sentimos sua dor e insegurança, por detrás da fachada de general reluzente e invejável. Insegurança fruto de uma sociedade superficial e de um passado traumático aos quais sobreviveu, mas que ainda não se cansa de fazer novas vítimas! E agora, nós, marejados de dor e arregalados de medo da incoerência e polaridade humana, que as experimentamos em nós mesmos ao acompanharmos esta história, olhamos atônitos, de fora e de dentro, dançando como numa dança ofegante de Pina Baush, na pele de Otelo, Iago, Desdêmona, Emília, Cássio... Personagens que se revezam traduzindo algo também nosso, fragilidades e incoerências aqui e acolá, expostas na nossa frente!

Eu poderia escrever mais 10 páginas com imenso prazer, borbulhante que este texto e processo ainda me deixam, mas ficará para outras postagens futuras. Como nos disse nosso diretor, “é um texto infinito”, poderíamos passar anos estudando e experimentando novas concepções possíveis além da que escolhemos. Eu vou encerrar este post com um pequeno texto redigido para agradecer, por ocasião do fim da temporada em 2015, mas na época, acabamos surpreendidos com a concretização de um convite, logo em seguida à postagem, de retornamos à Olido em dezembro com mais 2 apresentações! Eu queria ter falado aqui sobre os editais que não ganhamos e como conseguimos encabeçar a campanha de financiamento coletivo, o desafio do trabalho do ator coringa que foi o que mais demandou tempo nesta montagem que durou 9 meses, como um filho em gestação, mas em fim... O fato é que eu sinto intuitivamente, que este trabalho está em banho-maria e pode retornar a qualquer momento, vivo e surpreendente que é...

O Núcleo Teatral Simbiótico

O Núcleo continua ativo, porém eu não estou na nova pesquisa promissora que se esmera em torno do movimento negro (Veja os links no fim deste post). Neste ano, aceitei o convite do Mateus, atual integrante do Núcleo, para uma substituição de elenco em uma reapresentação da comédia de Ariano Suassuna, “O Santo e a Porca” subsidiada pelo Senac para a sua XIII Mostra de Artes Cênicas, um processo de pouco mais de 3 meses, curto e desafiador, porém muito gratificante e intenso que me agregou muito como ator profissional e provavelmente será tema de alguma postagem futura, aí é que tá, eu jamais imaginaria que eu estaria de novo no palco do Senac, quase dois anos depois de me formar e com uma comédia incrível de um Grande nosso, um nordestino, como eu também tenho a satisfação de ser! Também iniciei, em agosto deste ano, uma série de experimentos para um novo trabalho que eu chamo de dança-performance, “Permeável”, na Av. Paulista, (veja o link ao fim deste post) no formato de intervenção urbana, no qual eu me desafio a meditar por 20min e na próxima hora, descalço, sobre o cimento, busco dilatações sensoriais intensas transformando todos os estímulos, encontros e a digestão destes atravessamentos em uma dança inusitada e despretensiosa “para relembrar o ser permeável anestesiado sob um mundo de cimento”, trechos são executados com o celular a mão e transmitidos ao vivo pelo Facebook, com a intenção, dentre outras, de trazer à tona a nossa relação filtrado pelos aparelhos celulares e pelo mundo virtual, na sequência, a obra também inclui experimentos de invasão da experiência real pelo o mundo virtual em conversas, encontros virtuais teletransmitidos que funcionam como uma espécie de dança de ideias, com interrupções e remanejamento do fluxo dos pensamentos dançantes neste diálogo, intercalado de textos, cumprimentos, perguntas e etc, uma avenida Paulista Virtual com um "louco" dançando no meio dela.

Me despeço por aqui e deixo vocês com o pequeno texto, o qual citei, e com muita gratidão a todos os que contribuíram com a realização de #SomosTodosOtelo, a todos os que assistiram e compartilham conosco muitas desta memórias, destas personas e seus encontros e grato por poder compartilhar estes relatos e revivê-los agora magicamente com minha memória, um ano depois.

“Com grande alegria o Núcleo Teatral Simbiótico encerrou neste sábado, 07/11/15, no Inst. Pombas Urbanas, zona leste, esta pequena temporada de #SomosTodosOtelo! Após uma micro circulação pela zona sul e um bate-e-volta em Alfenas, MG, quase seguido! Encerrar não é bem a palavra, pois estamos no primeiro degrau, ainda sem fôlego com tudo o que aconteceu e com o movimento que se criou! Passa um filme, desde a decisão do grupo de concretizar esta montagem, o empecilho financeiro, a vakinha (é k mesmo, rs) e os “reais” apoiadores, os desafios diários normais e pessoais de quem vive este ofício, o ajuntamento de tantos parceiros que abraçaram este projeto, a cada apresentação que exigiu adaptação viva, tanto aprendizado, novos olhares, retornos às gêneses, a experiência única de reviver esta história que tanto nos provoca e a busca de compartilhar com o público ao nos atravessarmos por seus conflitos, conflitos em/de Otelo que são nossos, olho-no-olho com o público, olhos sublinhados, ousamos, com o deslumbramento e o peso da responsabilidade, humildade e riscos, convidamos o público a estar também fisicamente junto conosco em cena vivendo o incômodo transgressor que a arte pode proporcionar à quem se permite, rumo à novas percepções, sensações e novos estados de consciência… Para fechar este post (não esta história!) porque não palavras de Shakespeare?

“O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres são meros atores: Eles têm suas saídas e suas entradas; E um homem cumpre em seu tempo muitos papéis…”

“As You Like It”, Ato II, Cena VII.”

LINKS

Novidades sobre a atual pesquisa do Núcleo Teatral Simbiótico: www.facebook.com/NucleoTeatralSimbiotico

Informações técnicas sobre a peça #SomosTodosOtelo: http://nucleoteatralsimbiotico.tumblr.com

"Permeável" Dança Performance, Roni Diniz clique aqui

Como muitos ainda me perguntam sobre como é o Curso de Teatro do Senac, disponibilizo aqui as informações.

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