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Confecção de Máscara da Commedia Dell’Arte e as 7 camadas da personagem


Ator Roni Diniz - Máscara de Arlecchino

O processo de confecção de uma máscara teatral é muito rico, tanto para o ator quanto para qualquer artista, é um projeto prazeroso, desafiador, lento e imbuído de significados em cada etapa, assim como o trabalho de construção de uma personagem. Não é à toa que uma das teorias sobre a etimologia da palavra personagem é a palavra grega PRÓSOPON, “máscara”.

Concluímos neste mês, esta oficina que aconteceu no Sesc Campo Limpo (um dos mais recentes e valiosos presentes que ganhou a minha atual região de residência). Com dois encontros semanais, de três horas cada, e pouco mais de um mês de duração, as aulas noturnas mesclaram teoria e prática desde o primeiro dia, um mergulho no universo da Commedia Del’Arte, dentro do que o tempo nos permitiu. Ministrada pelos queridos Wander Rodrigues, especialista na confecção e pela atriz Isabel Lima, que tem um trabalho aprofundado na Commedia Dell’Arte.

Eu fui atraído principalmente pela proposta de atuação com a máscara, me interesso muito pela investigação dos estímulos externos e internos para composição da personagem ou como pura “transliteração” da informação que “habita” o objeto para a atuação do corpo. Além do meu absoluto fascínio pelo o universo das máscaras e as analogias possíveis em torno das “máscaras sociais” necessárias à nossa sobrevivência, porém soluções que, aos poucos, roubam ou retardam nocivamente o encontro com a própria essência e real identidade, configurando um ciclo vicioso de ilusões e status comercializáveis, que, infelizmente, são mais cômodos do que o desconforto da busca e do olhar pra si... Viagens minhas a parte, risos, compartilhamos nossas experiências sobre o assunto, minha primeira referência mais consciente em confecção de máscara foi a construção das máscaras de bunda que faziam parte do “Facebunda”, espetáculo e pesquisa de dança contemporânea que tive o prazer de desenvolver com o Coletivo Provisório de 2011 a 2013. Mas bem antes disso, já me inquietavam reflexões que deram ímpetos em versos ao meu antiguinho poema “Máscara de Nu”.

Na primeira aula, entre bibliografias e filmes referidos na aula, peguei o livro “Arlequim Servidor de dois amos” de Carlo Goldoni. Gostei bastante da leitura, e pude notar uma das coisas sobre as quais as nossas conversas sempre giravam em torno durante muitos dias desta oficina: o quanto é crítico à sociedade e atual este teatro que começou no séc. XV! Como exigia um trabalho completo do ator, corpo, voz, criação, aprofundamento... Um ator, geralmente ficava a vida inteira responsável pela sua personagem. No texto referido, uma mulher disfarçada de homem é o grande estopim de toda a confusão da comédia, como vem clara, pelo menos ao meu ver, a questão da desigualdade entre os gêneros e as relações de trabalho, patrão, empregado, de família, pai, filhos, casamento... Este mote da mulher que se empodera de seu destino a despeito dos moldes sociais impostos, seja por amor ou outras questões, também aparece bem forte em algumas comédias do Shakespeare e é muito interessante conhecer algumas fontes que um grande dramaturgo provavelmente teve acesso e perceber como ele se apropriou de muitas fórmulas que já existiam e como sua genialidade aparece no ingrediente novo descoberto e acrescentado... Assim como os brasileiros e contemporâneos Ariano Suassuna e Luis Alberto de Abreu, que também remontam em suas comédias, vários ingredientes dali. Acho que somente esta reflexão e comparação já merecia uma postagem futura!

Devagarinho, dia a dia, fomos nos conhecendo nesta oficina, e partes significativas de nossos “interiores” iam se materializando em nossa arte, em nosso molde, em nossa máscara, em nossas conversas, nos climas que se estabeleciam. Sim, “é a máscara que nos escolhe!” Cada personagem da Commedia Dell’Arte sintetiza fortemente determinados tipos que se repetem no jeito e personalidade mais comuns das pessoas em qualquer época, na comédia cada um tem suas características ampliadas de forma caricata e satírica. Aonde poderia morar mais comicidade do que na sinceridade de rimos de nossas próprias “mazelas”? No sadismo de rir de outro, como se fôssemos imunes... Engraçada esta referência à máscara que não é ligada à noção comum que geralmente associamos à este objeto como símbolo de falsidade e enganação. Neste processo foi o oposto, a máscara realmente sintetiza acordes matriciais do ser humano.

Com paciência e foco absoluto, fomos exercendo o dom humano e divino de criar! Nos surpreendíamos com o resultado de nosso trabalho e um com o do outro, uma turma muito talentosa! A nossa ação na sala aberta ao público, dentro do Sesc, era absolutamente performática, magnetizava a nós mesmos e ao público frequentador do local que, não raro, permanecia um certo tempo assistindo atentamente ao nosso trabalho. Além da companhia constante dos curiosos, tivemos grilos verdes e corujas assíduas em muitos dos nossos encontros naquelas noites geladas. Ouso recorrer à redundância de frisar como é importante ao trabalho do ator, a criação, o manuseio e a experiência da atuação com a máscara, para todos os outros trabalhos que se deseje fazer, sejam comédias ou não, sejam com máscaras ou não, é um exercício potente e catalisador! É como se muitas das questões do trabalho que são mais difíceis de serem compreendidas e discutidas, examinadas, devido à sua característica intangível, se materializassem diante do nosso “olho” cientista.

São sete camadas, uma fina, uma mais resistente, não pode faltar nenhuma e nem outra, intercaladas, cola diluída na medida certa, abrangendo todo o conteúdo, conectando, solidificando e unificando o todo, matéria-prima selecionada, preparada, observação, referência, técnica, criatividade e soltura, liberdade à medida que as bases estão bem incorporadas, solução dos problemas com leveza, prazer, foco, atenção às bolhas de ar entre as camadas que prejudicam a resistência final e... tempo. O processo e a própria textura da máscara pareceriam uma bela colcha de retalhos, manual e única. É o trabalho do ator!

Resumidamente, o processo foi assim:

1. Confecção do Molde:

Aprendemos a produzir o molde de gesso negativo (vazado) do nosso próprio rosto;

Usamos o molde pronto para produzir a escultura de argila do rosto;

Produzimos, sobre a escultura de argila de um rosto real obtido, a escultura da nossa máscara, de acordo com uma foto de referência (no meu caso o Arlequim vejas as imagens abaixo);

Criamos o molde final da máscara!

2. Confecção da máscara:

Aprendemos detalhes sobre a matéria-prima utilizada, papel reciclado, o manuseio dos materiais, as técnicas de Papietagem, usos de cada material, etc, etc. No caso da nossa máscara, foram sete camadas de papel marche, intercaladas de jornal e papel kraft picotados manualmente. Devido aos detalhes vincados do meu molde, demorei uma hora e meia para cada camada.

No meu caso, optei por usar a cor do próprio papel, ao invés de pintar, pois a textura rústica é mais interessante para as máscaras da Commedia Del’Arte do que um acabamento muito plástico, industrial.

3. Acabamentos:

Nesta etapa, a receosa tarefa de “desenformar” a máscara de dentro do molde, o corte das rebarbas, o implante do arame ao contorno das bordas e os acabamentos mais visuais.

4. Atuação com a Máscara:

Nesta tão esperada etapa, de três encontros, tivemos nossas capacidades de memorização e improvisação despertadas, sintetizamos as facetas de nossa personagem em uma palavra, em uma frase, e delas partimos. Exercitamos o corpo com e sem a máscara. Dias extremamente frios, preparamos e exploramos o corpo a partir dos gatilhos deste ser incorporado naquele objeto, que já era tão íntimo nosso depois do longo processo, literalmente conectados a esta persona caricata, mas que também temos em nós, com maior ou menor intensidade. Aos poucos ela foi nascendo, ganhando voz e vivacidade, vida própria, relações, deixando claras as regras da improvisação que, pouco a pouco, ia se estabelecendo, ali, “bem ao alcance do toque de nossas mãos”!

Universo vasto que quero conhecer e aprender mais...

Blog do nosso professor Wander: http://rodrigueswander.blogspot.com.br/

Atualmente o Wander está ministrando uma Oficina no Espaço MetaCultural: www.oficinametacultural.com.br

Peça: Arlecchino servitore di due padroni - Carlo Goldoni https://youtu.be/SNWlW-pABQs

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