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Sobre Faces e Bundas. Ecos do Projeto Facebunda: pesquisa e criação de espetáculo de Dança (2013)


Espetáculo Facebunda de Dança Contemporânea, Coletivo Provisório

Não temos como fugir, os assuntos da pesquisa do Facebunda continuam em pauta! Os questionamentos em torno da superficialidade e dos impactos das redes sociais em nossas vidas estão ainda mais gritantes com a popularização dos smartphones, basta olhar nas ruas e transportes públicos!

O funk como “acontecimento” indiscutível, ganha cada vez mais o status de ícone de nossa cultura e de nossa música por meio da Anitta e de outros, quer isso nos agrade ou não, quer seja isto justo ou não...

Em 2011, iniciei o meu segundo ano de dança contemporânea no programa Vocacional, nos primeiros encontros discutíamos muitas questões em torno da dança como voz para nossas questões artísticas e sociais, discutíamos a própria linguagem em si, por incrível que pareça, tínhamos muitas críticas também à Dança Contemporânea! Lembro-me de um artigo sobre dança contemporânea de uma revista que lemos e consideramos na época, usava o termo “ruptura pela ruptura” e eu nunca tinha visto, até então, um termo que denominasse tão bem alguns espetáculos principalmente de dança, mas não só de dança, também obras que seguem as tendências introduzidas com arte moderna¹, que me deixavam um tanto irritado devido ao seu aparente vazio conceitual, elitismo e, de novo, aparente falta de cuidado com o público. Explico, algumas obras e artistas me davam a impressão de deixar-nos num vazio medonho sem oferecer guias que ajudassem a mergulhar na obra, como se fosse uma obrigação de quem veio assistir ser “culto” o suficiente para ser capaz de absorver... Depois acabei achando um outro termo em algum lugar... “Artista que cria somente em torno do próprio umbigo”... Mas esta minha fase rancorosa passou! Ufa...

O nosso próprio umbigo nunca é só nosso, pois ele também tem vestígios do lugar onde se vive e das pessoas que encontramos, aliás já vi um espetáculo lindíssimo sobre o umbigo! Risos. Hoje ao ver uma obra, invisto um tempo buscando as dicas sobre o tipo de abordagem proposta, dicas vão sendo dadas na própria obra, às vezes, também deixo o racional um pouco de lado, em standby, quando noto uma proposta mais sensorial. Não convém ir ver Picasso ansiando apreciar um rosto inteiro com sombreados esfumaçados, né? Nos fazeres artísticos contemporâneos e nas abordagens propostas, os artistas e o público são cada vez mais autônomos, o artista atual, quase sempre, inaugura e se arrisca em novos caminhos para compor sua obra, e o público, tem a liberdade, se assim desejar, de eleger e interagir com o que o atrai particularmente, criando de maneira ainda mais autônoma os seus significados e relações dentro do caminho proposto, às vezes, um caminho que você inaugura em tempo real junto com o artista, único e não reproduzível... Tenho observado que o experimento e a experiência oferecem graus de interação diferentes das alcançadas com a apresentação convencional de um espetáculo, às vezes, muito mais potentes em alguns sentidos, e que interessam mais à pesquisa e à busca de novas formas de convidar o público ter contato e relações com a obra! O "Processo" vem ganhando conhecimento público e até mesmo a sua participação direta, deixando um pouco de lado aquela impressão de produto pronto como único acesso e representação do todo que a obra propunha...

Voltando ao Facebunda, em 2011, nossa turma queria muito criar algo em torno de algum tema específico no qual nos debruçássemos, algo que conversasse diretamente com o local onde habitamos e com nosso público! Chegamos a um consenso da busca de uma dança que não se resumisse na busca de exibição técnica e sim em provocações e despertar de consciência! Já que também era este o movimento que a dança despertava em nós, provocação e consciência sobre os nossos próprios corpos, limites, emoções e expressividades... Foi assim que iniciamos um debate em torno de nossas opiniões e experiências com o Funk Pancadão, o mote inicial foi uma indignação com as letras que rebaixavam a mulher ao status de pedaço de carne a ser comida, uma bunda como uma fruta, à erotização infantil exacerbada... Eram considerações que nos assustavam, ali tínhamos tudo para construir uma abordagem moralista e puritana do tema e talvez até hipócrita, mas como partimos da dança contemporânea para analisar o objeto do estudo antes de montar um discurso, não tinha como ficar raso assim, pois sentimos na pele - ou melhor, na bacia - o que eram aquelas sensações!

Passamos meses experimentando o ritmo, as batidas, pesquisando como nossos corpos reagiam, discutindo os efeitos culturais em seus contextos e seus desdobramentos... Deste modo, passamos por momentos de discussões sobre as máscaras sociais para a sobrevivência, o capitalismo, a competitividade desregrada, o estilo de vida acirrado nas comunidades, das quais fazíamos parte, de modo que ficou fácil entender como aquela matriz sonora africana, excluída às letras, fosse talvez o que mais lembrasse o que é ser humano que sente e se expressa, livre do peso do dia-a-dia massacrante que o sistema impõe... A nossa abordagem foi se costurando em torno do desejo de um despertar de consciência evitando os extremos, os dogmas, mas refletindo honestamente sobre suas consequências e como esta dança era manipulada socialmente para disseminar mensagens questionáveis. Pairando entre o animalesco e o sublime, optamos fazer um espetáculo ao qual geralmente nos referíamos como sendo “sem legendas explicativas”. Não raro, principalmente nos CEU’s, era comum nos pedirem as "legendas", mas nossa resposta era algo como: “Qual legenda você poria?”. Consciência individual e coletiva, de quem somos, estamos nos tornando ou o quanto somos manipulados, também começávamos a vivenciar mais profundamente por meio da arte da dança e da pesquisa em curso.

Assim, passamos pelo conceito de “normose”, hábitos que considerados normais pelo senso comum, às vezes até bonitos, mas altamente prejudiciais à nossa saúde e bem-estar em longo prazo, como o hábito de fumar que já foi um dia status de liberdade, o machismo, o racismo entre outros...

O termo “normose” surgiu na França por Jean Yves Leloup. Normose é um nome dado ao conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria de uma determinada população e que levam à sofrimentos, doenças, ou mortes.

Passamos pela “Modernidade Líquida” de Zygmunt Bauman, nos debruçamos sobre as questões em torno da efemeridade das relações, o vazio existencial, a busca de aceitação e pela música “Nádegas a declarar” do Gabriel O Pensador, entre outros...

O projeto foi contemplado com edital VAI em 2013, assim se estruturou o Coletivo Provisório e no terceiro ano de existência do projeto, contamos com duas oficinas marcantes, abertas ao público no CEU Casa Blanca, uma de Processos Criativos na Dança e outra de Matrizes Africanas, nesta última, pudemos traçar uma linha do tempo entre a batida africana pura e seu despertar de nossas ancestralidades, seu rito sacro e a honra à terra e à mulher como símbolo de fecundidade e produtividade até a banalização do sexo e o corpo visto como descartável em nossas letras repetitivas, nossos “novos mantras” sociais...

Nós discutíamos em grupo em torno da subjetividade da dança contemporânea e sua natural dificuldade de aceitação deste tipo de trabalho por um público mais habituado a engolir produto mastigado e pensado para mantê-lo sob domínio... Sendo assim, era compreensível lidarmos com um certo apego a uma manifestação que representava uma identidade para muitos! Fatos como os playboys aderindo às músicas, universitários deixando seus campus para defenderem a beleza da quebrada que só frequentavam durante um pancadão na busca de drogas e sexo fácil, longe do conforto que não lhes oferecia mais níveis suficientes de adrenalina, isto inflava o ego de uns e despertava indignação de outros na comunidade. Foi assim que, certa vez, saímos tão decepcionados de um Fórum de Discussão organizado pela prefeitura para discutir o Funk, na Biblioteca Monteiro Lobato. Nos deparamos com representantes políticos interessados em conquistar apoio da comunidade prometendo mundos, fundos, voz e espaço ao Funk e seus representantes cheios de marra, mulheres representantes defendendo o direito de mostrarem suas bundas, direito de serem chamadas de cachorras, e, desviando o cerne das questões, nenhum interesse em discutir o tema, reflexão nenhuma sobre seu contexto, sua gênese e suas consequências, o que mascara, nem de um lado e nem de outro... E hoje se fala tanto em Cultura de Estupro, Mc Biel... A máscara de bunda maior se ostentava ali bem na nossa frente e nos fez dançar com ainda mais força quando foi a hora certa, onde, quando e como deu!

Deste modo, empreendemos lado a lado com o processo criativo das cenas, um aprofundamento das questões sociais e humanas por detrás do estilo do funk, a busca de aceitação e de status, as disputas sociais, a “compra” e o descarte de pessoas como mercadoria paralelamente ao estilo de vida capitalista, a efemeridade das relações e o afastamento da essência humana ao lado da predominância dos “perfis” e relações virtuais, editáveis, maquiadas, fakes...

Com silhuetas de corpos e bundas normais e diversas, sob macacões cor de pele, dançamos ostentando nossas voluptuosas máscaras de bundas, feitas por nossas mãos, hora sobre nossas nádegas tão comuns e naturais, hora sobre nossas faces mestiças de carne e osso, molhadas de suor. Linhas azuis pontilhadas sobre nossa segunda pele, indicando as insatisfações com nossos próprios corpos que nos ensinaram a observar, sobre reflexos manipulados em nossos espelhos de pixels. Peles marcadas em rascunhos de traços cirúrgicos ansiosos por um bisturi! Sentados num banco, em cena, também disputamos um lugar para o espetáculo que vai começar, o lugar do outro que é sempre melhor do que o nosso e é o que ansiamos repetidamente. Nos tateamos, com desconfiança, recalque e desesperos afetivos sob sons de notificações de redes sociais, ruídos digitais e batidas. Entre comparações desleais deste corpo despadronizado, nos conectamos e desconectamos. Construímos e descontruímos nossas redes e nosso ídolo da vez, ansiosos por também ser a bunda da vez. Perdidos entre o real e o representativo, temos nossas silhuetas confusas entre os perfis idealizados que construímos na madeira crua a partir de “nós mesmos melhorados”. Vestindo saiões vermelhos pesados que se derramam a partir do centro corporal, postura alinhada, empreendemos uma dança de protocolos e formalidades para um quase beijo, entre encontros e flertes com outros bailarinos ou com os fakes de madeira, despretensiosamente, às vezes revelávamos um buraco traseiro em nossas saias, deixando nossas bundas nuas “acidentalmente”. Comemos a maçã de nossa escolha ou a programada para cada um e descobrimos a violência de não se encaixar nos padrões pelos quais seremos julgados e castigados sempre, até na dança e na arte! De tanta opressão, naturalmente acessamos o bicho capaz de nos fazer sobreviver ao holocausto, voraz por vida e plenitude, mas ingênuo, domesticável e facilmente iludido pelo prazer do coito passageiro. Ao fim, como forma de renascer, em nosso sutil protesto metafórico, recorremos às máscaras como reais soluções, que organizam o bicho ainda ofegante em nossos corpos pós-apocalipse e assumimos de vez, a mentira como verdade, para enfrentarmos o mundo que, quase sempre, nos assiste sedento de conforto, catarse e bunda...

NOTA: Arte Moderna. Me refiro aqui à linha artística de oposição e rupturas com as formas clássicas nas expressões artísticas, independente da nomenclatura mais adequada para definir a arte que temos hoje, se pós-moderna, anti-arte, etc., me refiro ás tendências que surgiram no final do século XIX em oposição às formas clássicas do romantismo e realismo. Porque a realidade que eu lido muitas vezes ainda é a de um público com expectativas de uma narrativa “clássica” ou “novelística” na arte, uma "paisagem realista" e bela por exemplo, e a qualquer outro tipo de materialidade, uma pergunta recorrente: “O que significa isto?”. A expressão Arte Moderna abarca as esculturas, pinturas, literaturas, arquitetura, música e fotografia. Artistas experimentalistas declararam na época, que o objetivo da arte não era o da simples representação do visível, mas a expressão interior da emoção e da sensibilidade buscando constantemente novas formas de expressão e novas lógicas, ex: cubismo, surrealismo... O marco inicial do movimento modernista brasileiro foi a realização da Semana de Arte Moderna de 1922.

Sobre Faces e Bundas

Em destaque a face,

Este semblante, sorridente ou não, que nos representa.

Indexado aos perfis e centralizado na carteira de identidade.

Uma lembrança associada à qualquer referência que nos é feita.

Na face, a boca que fala expressivamente e come.

Hoje as falas são letras e o comer é ler.

E os olhos que denunciam o que a mente processa nos bastidores,

Já nem sempre se manifestam, não mais ao vivo.

Eis o meu resumo da composição espetacular da face.

A face que um dia envelhecerá ou se mutilará cirurgicamente.

O símbolo da imagem pela qual, alguns passam a vida inteira

Zelando ou destruindo em prol de deter algum controle

Da maneira como se é visto e lembrado!

Ou de como não se quer ser associado.

Pobre imagem fragmentada da inteireza de um ser,

Inteireza incapaz de ser contida em uma única feição ou representação.

Lá está, aglutinadora dos adjetivos que nos são atribuídos.

Sem questionamentos.

Seja situação resultante da comodidade ou

Inaptidão ensinadas pela contemporaneidade

E estimuladas pela instantaneidade dos tempos.

Se riso: a alegria. O não riso: a melancolia.

Na outra extremidade... Eis a bunda!

O símbolo tão associado à sexualidade!

Mas, ironicamente, atribuído à inexpressividade

Ou à ingenuidade exacerbada e covardia ("seu bundão!").

Deveria a bunda franzir o cenho em protesto?

Formas redondas e voluptuosamente simétricas

Abrigam o ponto de fuga das nossas inutilidades.

A bunda, o lado de trás,

A última visão dos detritos que se despedem do nosso corpo,

De onde brota o produto final de todo o nosso consumo.

Simples bundas com tão poucas variações estéticas se comparadas às faces.

Da sua simplicidade à atração visual. O seu despontar na roupa e na arte.

A paixão nacional. “Nádegas” se declaram.

Ponto em comum compartilhado por ambos os sexos.

Inquestionável direito às preferências pessoais, igual para mim e tu.

Gosto, cada um tem o seu!

Formas tão cultuadas por uns e ocultadas por outros.

Seja um ícone ao “pudor”, a banalização sexual ou, quem sabe,

Ao concomitante paradoxo intrínseco que nos fomente a consciência?

À emergência das vertentes questões presentes nos roteiros e contextos da vida moderna

Que nos molda ou deforma sadicamente a seu bel-prazer, rumo ao desconhecido.

Enquanto descemos alegremente “até o chão” em surtos de extravasamento

E ilusões de propriedade cultural.

24/09/12 Roni Diniz

Trailer do Espetáculo: https://youtu.be/cbXPM_nETGY

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